Assim que pisou no apartamento na Vila da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, o empres\u00e1rio Paulo Ferreira da Silva sentiu uma \u201cenergia pesada\u201d. A sensa\u00e7\u00e3o, segundo ele, era espiritual, embora sua origem fosse material: o cad\u00e1ver de uma mulher de 75 anos que acabara de ser retirado de um dos aposentos. O v\u00eddeo de pouco menos de 30 segundos que Ferreira gravou no local mostra uma mancha escura no colch\u00e3o sobre o qual o corpo passou seis meses em processo de decomposi\u00e7\u00e3o. V\u00ea-se uma cadeira de metal junto \u00e0 cama. Era ali, sup\u00f5e Ferreira, que a filha farmac\u00eautica de Maria Auxiliadora se sentava para aplicar produtos \u00e0 base de formol no cad\u00e1ver de sua m\u00e3e, na v\u00e3 tentativa de preserv\u00e1-lo.<\/p>\n\n\n\n
\u201cHist\u00f3ria macabra\u201d, diz Ferreira. O caso foi amplamente noticiado pela imprensa: o corpo de Maria Auxiliadora foi descoberto em setembro do ano passado, quando a filha passou mal na casa e teve de chamar o Samu. Os socorristas foram investigar o cheiro forte que vinha do quarto e se depararam com a mulher morta.<\/p>\n\n\n\n
Ferreira fez o v\u00eddeo no apartamento dias depois. Restos mortais s\u00e3o, afinal, parte do seu neg\u00f3cio. Ele \u00e9 s\u00f3cio da Attuale Brasil, uma das poucas empresas do pa\u00eds que se dedica a higienizar ambientes contaminados por cad\u00e1veres, retirando do local pele, sangue, secre\u00e7\u00f5es e outros res\u00edduos desagrad\u00e1veis. Na ind\u00fastria especializada \u2013 sim, existe uma \u2013, esse servi\u00e7o \u00e9 chamado de limpeza p\u00f3s-morte, limpeza de trauma ou limpeza forense. Ferreira s\u00f3 n\u00e3o aceita que a palavra \u201cfaxina\u201d seja empregada para definir o que ele faz: \u201cQuando voc\u00ea fala que \u00e9 faxina, as pessoas acabam diminuindo o nosso trabalho.\u201d<\/p>\n\n\n\n
Com sede em S\u00e3o Paulo e filiais no Rio de Janeiro e Belo Horizonte, a Attuale n\u00e3o faz a retirada do corpo, tarefa que em geral fica a cargo do Instituto M\u00e9dico Legal (IML). A empresa cuida s\u00f3 do ambiente. Maria Auxiliadora morreu de causas naturais, mas a Attuale tamb\u00e9m limpa cenas de homic\u00eddio e suic\u00eddio. Seus profissionais entram em campo depois de conclu\u00eddos os trabalhos da pol\u00edcia forense \u2013 com a qual, ali\u00e1s, n\u00e3o mant\u00eam contato: s\u00e3o clientes privados que buscam a empresa. Para a descontamina\u00e7\u00e3o do apartamento na Vila da Penha, Ferreira foi contratado pela neta da falecida, filha da farmac\u00eautica que por meses manteve o corpo de Maria Auxiliadora escondido no quarto.<\/p>\n\n\n\n
Quando Ferreira e tr\u00eas funcion\u00e1rios seus entraram em a\u00e7\u00e3o, os vest\u00edgios da decomposi\u00e7\u00e3o j\u00e1 haviam secado, incrustando-se no ch\u00e3o. A limpeza durou seis dias, o maior tempo que a empresa permaneceu em um s\u00f3 lugar. O piso de tacos teve de ser arrancado; todos os m\u00f3veis do quarto foram desmontados; todos os itens contaminados foram incinerados \u2013 incluindo o colch\u00e3o. <\/p>\n\n\n\n
Quase um ano depois, a hist\u00f3ria ainda assombra o profissional da limpeza forense. \u201cMe arrepia, \u00f3\u201d, diz Ferreira, exibindo o antebra\u00e7o para a c\u00e2mera do computador durante a entrevista por v\u00eddeo que concedeu \u00e0 piau\u00ed<\/strong>. O caso o perturbou principalmente por causa do mist\u00e9rio n\u00e3o esclarecido: por que a filha de Maria Auxiliadora tentou preservar o corpo da m\u00e3e? Mesmo assim, Ferreira e sua equipe conseguiram honrar o lema da empresa: \u201cLimpamos como se nada tivesse acontecido.\u201d<\/p>\n\n\n\n Paulo Ferreira da Silva nasceu em S\u00e3o Paulo, tem 48 anos e \u00e9 formado em administra\u00e7\u00e3o de empresas. S\u00f3 resolveu montar o pr\u00f3prio neg\u00f3cio depois de trabalhar duas d\u00e9cadas como servidor p\u00fablico estadual no sistema Faesp Senar (Federa\u00e7\u00e3o da Agricultura e Pecu\u00e1ria do Estado de S\u00e3o Paulo\/Servi\u00e7o Nacional de Aprendizado Rural). Fundou a Attuale Brasil em 2010. No ano anterior, ele havia feito um curso de tr\u00eas meses em uma empresa americana de limpeza forense, a Steri-Clean, em Sacramento, na Calif\u00f3rnia \u2013 por sorte, Ferreira tinha um parente na regi\u00e3o, que o hospedou nessa temporada. Nos Estados Unidos, o setor de limpeza p\u00f3s-morte \u00e9 bem mais vigoroso do que no Brasil. H\u00e1 empresas com filiais espalhadas pelo pa\u00eds inteiro, oferecendo atendimento 24 horas.<\/p>\n\n\n\n Apesar de sua forma\u00e7\u00e3o em limpeza p\u00f3s-morte, Ferreira n\u00e3o se lan\u00e7ou de imediato nesse complicado of\u00edcio. De in\u00edcio, a Attuale fazia a limpeza de obras. A demanda da constru\u00e7\u00e3o civil, por\u00e9m, ficou abaixo do esperado. Ferreira e sua s\u00f3cia, Michele Cheres \u2013 que entrou na empresa poucos meses depois da sua cria\u00e7\u00e3o, ainda em 2010 \u2013 come\u00e7aram a buscar alternativas para diversificar seus servi\u00e7os. Em meados de 2012, decidiram-se pela desinfec\u00e7\u00e3o de ambientes contaminados por cad\u00e1veres, servi\u00e7o que pode custar at\u00e9 8 mil reais ao cliente, a depender da situa\u00e7\u00e3o do local.<\/p>\n\n\n\n Ferreira n\u00e3o se limita ao trabalho de escrit\u00f3rio. Ele bota a m\u00e3o na massa \u2013 mais precisamente, em materiais biol\u00f3gicos de risco: sangue, fezes, gordura, v\u00f4mito, saliva, sobras de pele. O desafio maior \u00e9 lidar com o necrochorume, termo t\u00e9cnico que designa os l\u00edquidos expelidos pelo cad\u00e1ver putrefato. Bact\u00e9rias e fungos come\u00e7am a decompor o corpo ap\u00f3s a morte, processo que com o tempo leva \u00e0 liquefa\u00e7\u00e3o de tecidos e \u00f3rg\u00e3os. Idealmente, o trabalho desses agentes necr\u00f3fagos s\u00f3 chegar\u00e1 a seu est\u00e1gio avan\u00e7ado quando o morto j\u00e1 estiver fechado no caix\u00e3o. Ou ser\u00e1 interrompido bem antes pela incinera\u00e7\u00e3o. Mas \u00e0s vezes a decomposi\u00e7\u00e3o se d\u00e1 em uma casa ou apartamento fechado. Quando o corpo \u00e9 afinal encontrado, empresas como a Attuale Brasil s\u00e3o chamadas em car\u00e1ter de urg\u00eancia.<\/p>\n\n\n\n Muitas vezes, \u00e9 o fedor de podrid\u00e3o que alerta vizinhos e funcion\u00e1rios de um condom\u00ednio para o morador solit\u00e1rio que faleceu h\u00e1 semanas. Em casos extremos que lembram filmes de terror trash<\/em>, a descoberta ocorre quando o necrochorume come\u00e7a a se infiltrar no ch\u00e3o. Em um dos atendimentos de Ferreira, o l\u00edquido pingava sobre o arm\u00e1rio da vizinha que morava abaixo da pessoa morta. Todas as roupas dela foram para o lixo.<\/p>\n\n\n\n Das cidades em que a Attuale oferece seus servi\u00e7os, o Rio de Janeiro \u00e9 considerada a mais dif\u00edcil. Isso porque, segundo Ferreira, os profissionais encarregados da remo\u00e7\u00e3o do corpo n\u00e3o s\u00e3o muito qualificados. N\u00e3o \u00e9 raro que algu\u00e9m deixe para tr\u00e1s vest\u00edgios do corpo, como um peda\u00e7o do couro cabeludo descolado do cr\u00e2nio.<\/p>\n\n\n\n Fonte: Revista Piaui<\/p>","protected":false},"excerpt":{"rendered":" Assim que pisou no apartamento na Vila da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, o empres\u00e1rio Paulo Ferreira da Silva sentiu uma \u201cenergia pesada\u201d. A sensa\u00e7\u00e3o, segundo ele, era espiritual, embora sua origem fosse material: o cad\u00e1ver de uma mulher de 75 anos que acabara de ser retirado de um dos aposentos. O v\u00eddeo […]<\/p>","protected":false},"author":4,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"closed","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":[],"categories":[1],"tags":[],"yoast_head":"\n